E não é que hoje, do meio do nada, eu me lembrei do Jornal da Tosse (vulgo Record em Notícias)? Era um telejornal que passava ao meio--dia na rede de mesmo nome nos anos 1980, conhecido pelo time de comentaristas, todos com idade para terem participado da cobertura do descobrimento do Brasil.
Claro que não foi exatamente do meio do nada. A memória associa as imagens como bem quer. E no meu caso foi o seguinte: aqui na Anglia chegou a primavera e com ela, a época dos casamentos. Justamente hoje, passamos eu e Alquimista próximos de um cortejo de noivos numa igreja anglicana. O vestido da daminha de honra, rosa com babados, me lembrou da primeira vez que eu exerci a função, no alto dos meus cinco anos, no casamento da minha tia Cesira e do meu tio Nelsinho.
Lembro até hoje da costureira que fez o vestido para mim e para minha irmã Tereza, minha partner na missão de levar as alianças sem cair. E eis aí onde entra o Jornal da Tosse: eu lembro de estar experimentando o vestido no ateliê da costureira, na Mooca... E da TV, ligada no telejornal do meio-dia. E com alguém, obviamente, tossindo!
Acabei de acusar e muito minha idade com essa. Alguém mais lembra desse telejornal?
Acusando o recebimento de uma caixa de Páscoa enviada do Brasil pela minha mãe: mistura para bolo de fubá, bananada, Sonho de Valsa, Lajotinhas, biscoito de gergelim.
O mais importante, porém, não é a comida e sim o amor que um pacote destes representa -- especialmente numa semana de chuva chata que só agora está abrindo.
(e ela disse que mês que vem manda mistura para pão-de-queijo. Como achei um moço que vende café brasileiro no mercado, será muito bem vindo).
A primeira vez que eu coloquei lentes de contato, eu não me reconheci no espelho. Acostumada com os óculos, fiéis companheiros desde os meus (já bem distantes) 14 anos, eu estava de repente sem escudos, sem defesas - e vendo tudo, ainda assim! Coisa estranhíssima, sensação engraçadíssima.
A primeira vez que coloquei tinta de outra cor na caneta-tinteiro, após tantos meses de anotações em sóbrio azul-lavável, foi uma surpresa. De repente eu não reconhecia meu texto - era a minha caligrafia, sim, e lá estavam os traços separando as sentenças no lugar do ponto-e-vírgula. E no entanto o cérebro demorou a reconhecer, porque estava tudo escrito em tinta marrom!
Quando tive que me dirigir a um guarda, na França, para pedir informações sobre qual ônibus pegar, me assustei ao ver que sim, eu falava o idioma -- o guarda compreendeu o que eu disse e eu compreendi o que ele disse. Uma coisa é falar na sala de aula, outra coisa é falar ao vivo, na hora em que as coisas apertam, principalmente se o cérebro está condicionado a perguntar em inglês quando longe da terra natal.
Não são só as medidas do corpo que nos definem. Às vezes é bom lembrar disso.
Tempestades de neve: três, e das pesadas. Em plena Páscoa, quando o tempo deveria estar abrindo. O aquecimento global explica isso também? A vista da minha janela parece cenário de Natal. E estamos no fim de março, caramba.
Enfim. Fui e voltei. E voltaria de novo. Adorei os lugares, as pessoas, os albergues, tudo enfim.
Estrasburgo tem a catedral mais linda que eu já vi na vida. Um povo muito simpático. E uma espécie de pizza, chamada tarte flambée, que fez a alegria de uma mochileira que estava há três dias sem uma refeição quente. O restaurante foi recomendação de um senhor na rua que nos ajudou a encontrar o caminho. O dito restaurante, que aliás recomendo, tem só 500 e poucos anos - e incrivelmente não pediu nossas calças como pagamento da conta.
As ruas de Estrasburgo tem nomes em alemão e francês. Porque algumas cicatrizes não apagam nunca.
Frankfurt é uma cidade estranha, onde o metrô não tem nem catraca nem cobrador. Você compra o bilhete em uma máquina e passa o dia rodando sem que ninguém pergunte se você comprou o bilhete afinal. A mesma coisa em Colônia. Dá até um pouco de medo.
Frankfurt tem o engraçadíssimo Museu da Comunicação e Colônia tem o Museu do Chocolate. Adivinhe se eu não me diverti muitíssimo por lá. Encontrei no primeiro museu um Fusca amarelo-ovo pertencente aos Correios da Alemanha Ocidental, engraçadíssimo. Os carros dos correios brasileiros não tem a mesma graça. E no segundo museu, uma fonte de chocolate -- e um café que serviu grandes doces.
Para minha surpresa, os alemães foram uns amores. Não, sério mesmo, foram todos simpáticos e prestativos -- davam informações sem que a gente precisasse perguntar (bastava ter um mapa na mão e parecer perdido), sorriem, nada do estereótipo que eu tinha em mente. Bom, talvez estes existam em Berlim, sei lá.
Os parisienses são os parisienses, isto é, são mal humorados por natureza. É alguma coisa na água do rio Sena, só isso explica. Mas a cidade é linda e é isso que importa, afinal de contas. E o Louvre estava coalhado de gente, como de costume. Isso assusta um pouco a pessoa que 'so quer ver os quadros em paz.
E a Place Saint-Michel é minha e sua agora. Mesmo que eu viva cem anos, é de você que eu vou lembrar quando aquela fonte vier à memória.
Uma ex-aluna do alquimista escreveu um lindo trabalho de conclusão de curso sobre os dekasseguis, os brasileiros (filhos, netos de japoneses) que vão para a terra dos antepassados trabalhar. Uma frase do texto me acertou na testa: no Brasil, ela era a "japa", a estranha. No Japão, ela era a "brasileira", outra estranha.
Me perguntam às vezes se eu me sinto assim. Adivinhe as caras de surpresa quando eu digo que não!
Não sou britânica nem de nascimento nem de ascendência. Sou brasileira, ascendência ítalo-hispano-libanesa, nascida e criada numa ilha chamada São Paulo. E uma coisa que me deixa maluca em São Paulo é a subdivisão da nacionalidade, coisa que chega a níveis sub-atômicos. Ninguém nunca é brasileiro e ponto -- tem que se identificar com o Estado, a cidade ou região, o bairro onde nasce e ad infinitum.
Tudo isso para chegar na Grã-Bretanha e virar, da noite para o dia e sem aviso prévio, brasileiro. Tendo que registrar o passaporte na polícia, explicar o sotaque e falar sobre o futebol (e aí depende do interlocutor: até 2o anos, Ronaldinho; 25-30 anos, Romário; dos 30 até 40 a pessoa lembra do Sócrates e do Falcão; acima disso, falar sobre o Pelé resolve).
Eu nunca tive problema com isso - nem com a polícia, muito menos com a imigração. Por isso mesmo quando me deparo com histórias sobre brasileiros barrados na imigração britânica ou com compatriotas que me matam de vergonha, eu não sei bem como registrar o que eu sinto. Tristeza? Complacência? Ou dizer "isso não é comigo" e ir ler as notícias do esporte?
A imigração aqui é pesada, sim, muito -- como de resto na Europa inteira. São cães-de-guarda mesmo, com poder de vida ou morte sobre quem chega. Com eles não há conversa ou jeitinho que dê certo. Quando tenho que enfrentar o bicho, venho armada de tudo quanto é documento disponível neste e no outro mundo para explicar minha situação, de onde venho, para onde vou.
O fato é que temos má-fama. Brasileiros são considerados barulhentos, incapazes de obedecer as ordens mais simples -- não por falta de tutano mas por pura birra. Não preciso pensar muito para achar um exemplo: sabe comportamento de adolescente no cinema? Como você se sente ao ver aquele bando de gente barulhenta furando fila como se isso fosse normal e falando no meio da exibição?
Então. É assim que os oficiais da imigração se sentem...
E eis que eu vivo aqui e me dou bem com o lugar e com as pessoas e instituições. Adoro praticamente tudo por aqui (menos torta de rim e vento gelado de 60 km/h no inverno). Não tenho paciência para viver em gueto nem sinto banzo do Brasil (esse texto define bem esse aspecto).
Porém, não quero vestir a bandeira de St. George e fingir que não tenho sotaque, fingir que não é comigo. Acho que vou seguir adotando o comportamento de um amigo meu: judeu, ele disse certa vez que sente a necessidade de se comportar melhor do que a média porque ele representa, aos olhos de todos os outros, um povo inteiro. Se ele fizer uma besteira, lá vai o pessoal dizer "o judeu isso, o judeu aquilo".
Comigo aqui na Anglia é a mesmíssima coisa. Represento, mesmo sem o desejar, uma nação inteira. Isso me força a me comportar e me abre os olhos. Quando me perguntam do sotaque ou querem falar de futebol, eu converso sem problemas. Quero aprender sobre eles e quero que eles aprendam comigo o que é vir do outro lado do oceano.
Eu nasci com uma sina: viver entre dois mundos. Ambos são adoráveis e confusos ao mesmo tempo e eu não pretendo, de maneira nenhuma, escolher entre eles. Fico com os dois, sim senhor -- e quem não gosta que vá reclamar com o bispo!
O casal aqui vai ao mercado da cidade passear. Pára na frente de uma barraca de lanches (especialidade: jacket potato, ou batata assada com recheio) e o dono, um sujeito sorridente, pergunta na hora:
- O que vai ser, amigos?
- Só estamos vendo...
- Tem certeza? Vocês parecem com fome!
Acabamos desconversando e retomando o passeio. Dez minutos depois, voltamos à barraca -- impossível argumentar com o cheiro de comida boa.
- Por favor, um sanduíche. O senhor tinham razão, eu estou com fome! - manda o alquimista.
- Eu disse! Você precisa se alimentar bem, senão como vai carregar as sacolas da moça? - e apontou para mim.
Ainda por cima, o sanduíche era bom. O moço acabou de ganhar dois clientes fiéis.
Doctor Who era uma das poucas coisas que eu assistia na TV, na primeira vez que vim para a Anglia. Eu peguei o retorno da série, com Christopher Ecclestone e sua jaqueta de couro no comando da nave TARDIS. Depois o ator desistiu e foi substituído pelo David Tennant, que um amigo meu chama de Doctor The Who -- afinal, o personagem agora se veste como um mod.
Um programa de ficção científica que dura quarenta anos e segue inovador, divertido e assustador não é exatamente algo que você pode ignorar. Viagens no tempo, no espaço, em outros planetas, John Cleese nas participações especiais, Douglas Adams como roteirista no passado, grandes fantasias, grandes maluquices e uma nave que se disfarça como uma cabine telefônica dos anos 1950. O que há para não gostar?
A nova temporada vem aí, de novo com o David Tennant, o Décimo Doutor (e se você não entendeu o título do personagem, eis a explicação). Adivinhe se eu não estou estocando pipoca e preparando as almofadas do sofá...
No fim deste mês começa o horário de verão britânico, ou daylight savings time como chamam por aqui. Os dias vão ficando mais compridos, até que no pico do verão anoitece lá pelas nove da noite (e amanhece quatro da manhã, o que pode ser complicado para dormir).
O que complica é que a distância do Brasil, ironicamente, aumenta. Antes, eram duas horas de diferença no fuso horário. Agora são três, porque acabou o horário de verão por lá. No fim de março vão ser quatro horas!
Anna, 28 anos, na ponte aérea São Paulo (Brasil)/Norwich (Inglaterra). Casada com um alquimista. Vivo de escrever enquanto e porque respiro. English spoken, on parle français, nihongo ga wakarimasu (e durma-se com um barulho desses).
Minha voz você pode ouvir no podcast esportivo 3 na Copa.